domingo, 25 de setembro de 2011

Louco, eu? De forma alguma… ou o Experimento Pangloss–parte I

Tratava-se de um experimento revolucionário em terras tupiniquins. Não que já não tivesse sido realizado em outros países, sobretudo nos ditos países de primeiro mundo, mas, para o Doutor Augusto Pangloss, esse experimento seria um divisor de águas na psicologia brasileira, tal como Moisés foi um divisor de águas na história da humanidade. Vá lá, leitor, talvez nosso doutor Pangloss estivesse um pouco entusiasmado com a experiência e, com isso, a considerasse em termos tão vastos e grandiloquentes, mas quem de nós pode julgar o valor de uma experiência antes mesmo que ela seja realizada? Quem de nós pode julgar despropositada uma experiência de um visionário? Quem de nós pode julgar a sanidade ou insanidade de um renomado cientista que, por vezes ou, aliás, quase sempre, é visto como louco pela sociedade? Não seria a própria sociedade que é louca e o cientista, filósofo ou artista, o único são? Mas isso são considerações que atrapalham o pensamento do cientista, segundo o doutor Pangloss. Temos que ser frios e objetivos, repetia o doutor.

Qual era o objetivo do experimento? Demonstrar que as instituições de saúde, em geral, e as psiquiátricas, em particular, não estavam preparadas para distinguir entre o louco e o normal, entre o doente e o são.

Cabe ressaltar que um dos seguidores de doutor Pangloss (e uso o termo seguidor de forma, ao mesmo tempo, irônica e realista, porque os inimigos acadêmicos do doutor o acusavam de promover um culto mais do que um debate ou estudo e que seus discípulos não eram nada a não ser meros seguidores… Doutor Pangloss, que gostava de ironias, passou a chamar os seus discípulos de seguidores… da verdade), mas um dos seguidores de doutor Pangloss fez a seguinte observação:

“Mas esse experimento não já foi realizado pelo doutor David Rosenhan em 1973?!”

O doutor Augusto Pangloss sorriu. Os seus seguidores conheciam aquele sorriso. Era o sorriso de escárnio, de galhofa, de desprezo irrevogável. O seguidor que tinha feito a ressalva tremeu. Era quase inquestionável que ele seria expulso do grupo de forma não muito agradável. Mas não foi isso o que aconteceu.

“Meu caro colega, é claro que esse experimento é uma releitura do experimento de David Rosenhan. Uma releitura revolucionária! Uma revolucionária leitura! Nós não vamos apenas chegar em manicômios e dizer que ouvimos vozes. Nada disso! Nós vamos ser essas vozes! Nós vamos ser os loucos mais insanos já vistos nessa terra louca e disparatada! Sim. Meu propósito é embaralhar a dicotomia loucura e sanidade! Meu propósito é demonstrar que somos todos loucos e normais ao mesmo tempo…

“Se você não percebeu isso…”

Essas últimas palavras foram ditas em tom de modesta desaprovação. O próprio seguidor sentiu-se forçado a pedir humilíssimas desculpas e a reiterar a grandiosidade do projeto do doutor Augusto Pangloss.

Um observador mais atento seria capaz de perceber no olhar de doutor Augusto Pangloss, durante o pedido de desculpas do seguidor, um sibilino brilho de satisfação. Não uma mera satisfação que nós mesmos sentimos quando ouvimos que estamos certos, mas uma satisfação intensificada e tresloucada de absoluta convicção de suas ideias… Ou vai ver, leitor, foi só impressão minha.

O doutor e seus seguidores assinaram, cada um, uma declaração de suas intenções, cujas firmas foram devidamente reconhecidas em cartório. O projeto do doutor era simples: ele e seus seguidores deveriam chegar a uma instituição de saúde alegando ter ouvido visões, ou visto vozes, ou sentido o inefável, ou espumando pela boca, ou conversando com Napoleão ou Jesus Cristo, ou qualquer outro ato que indicasse loucura total. No experimento de Rosenhan, os falsos pacientes apenas diziam que ouviram vozes – muito banal, nos termos de doutor Pangloss.

Se requeridos pelos internos e outros psicólogos, os falsos pacientes de doutor Pangloss devem exacerbar suas características de loucura. Assim, os psicólogos e psiquiatras vão ficar visivelmente transtornados.

A ideia era exatamente confundir, transfigurar, despistar, obscurecer, achincalhar… Segundo doutor Pangloss, uma das críticas ao experimento de Rosenhan era exatamente este: a de que confundia o diagnóstico com uma informação falsa. Mas doutor Pangloss perguntou: “Não deveriam estar preparados os nossos profissionais da mente para a mentira? Para a desídia? Para o simulacro? Pois não daremos trégua para nenhum deles.”

Depois de três meses internados, caso viessem a ficar internados, os falsos pacientes revelariam o embuste.

Para o doutor Augusto Pangloss, se tudo saísse conforme esperado, seria uma tremenda vitória para ele.

Ele poderia desdenhar todos aqueles que foram contra ele, contra suas ideias, contra sua postura. Enfim, todo o corpo acadêmico da psicologia e psiquiatria brasileira.

Se tudo saísse conforme esperado…

A primeira fase do projeto Augustus foi implementada com sucesso. No total, foram dez falsos pacientes, incluindo o próprio doutor Pangloss.

Um foi ao hospital com grama na boca e pediu mais ração. Quando questionado, começou a bater na cabeça gritando que não suportava mais tantas vozes na dita-cuja.

Outro começou a andar nu na frente de uma clínica e fazia mímicas de tudo e de todos. Questionado, ele se dizia Adão, o primeiro e puro homem. Adão antes da expulsão do paraíso, obviamente…

Outro defecou em um balde e se sentou no refeitório pronto para provar a iguaria. Graças a Deus, um enfermeiro o agarrou antes de ele provar o excremento. (Aliás, foi o mesmo que ousara duvidar do doutor…)

E assim por diante…

Como o doutor Augusto Pangloss era conhecido no meio psiquiátrico (mais ignorado do que amado…), ele resolveu o seu problema com um ataque frontal. O seu pior inimigo era chefe de um casa de loucos, ou melhor, de um hospício, ou digo, de um instituto de saúde mental (apesar de lá dentro saúde mental ser um item escasso…), o doutor Teixeira Sabe-Tudo. Ele e nosso herói frequentaram o mesmo curso, com apenas um semestre de diferença. Os dois sempre foram rivais. Enquanto o doutor Augusto Pangloss enveredou pelo caminho radical da psicologia (isso segundo o próprio e quem sou eu para contestar o doutor Pangloss!), doutor Sabe-Tudo meteu-se nas roupas do conservadorismo. Tanto é que ele conseguiu ser chefe do prestigioso Asilo Bacamarte.

Doutor Pangloss chegou um dia no referido asilo, procurando por Sabe-Tudo. O dia estava de um azul cristalino e de um calor sufocável. Em seu escritório, cercado por uma montanha de formulários (a informatização do asilo ainda dependia de verbas municipais, estaduais ou federais… de quem viesse primeiro!), careca, quatro-olhos fundo de garrafa, orgulhoso e entediado, doutor Sabe-Tudo pensou em dizer que estava ocupado, que tinha muitos compromissos, que era o cara mais importante do mundo. Mas o tédio era enorme. Só perdia para a curiosidade! E doutor Sabe-Tudo mandou doutor Pangloss entrar.

“Doutor Sabe-Tudo! Vejo que está bem de vida!”, saudou Pangloss.

“Vou levando. Mas quem tem uma seita, digo, seguidores, digo, tantos estudiosos é que está bem de vida!” A cada “digo”, Sabe-Tudo dava uma risadinha.

Pangloss era alto, corpulento e iracundo. Capaz de esmagar Sabe-Tudo se quisesse! E o olhar de fúria não escapou a Sabe-Tudo.

“Vou direto ao assunto. Devo admitir que perdi a razão. Estou louco. A alguns meses, comecei a ouvir uma voz. Essa voz eu chamava Razão. Mas percebi que essa voz não poderia ser a Razão. Não haveria como! Ou isso ou estou completamente louco. O que, como grande pesquisador que sou, não descarto a priori. Tentei elucidar esse problema do meu ponto de vista, mas percebi que seria muito tacanho se ficasse só nele. Não sou como certo tipo de gente…”

Sabe-Tudo suspirou. Mal conseguia esconder sua satisfação…

“Então, você está louco?”

“Sim.”

“Um diagnóstico pobre, não acha?”

“Pobre, mas verdadeiro”, sorriu Pangloss.

“É o que veremos”, não sorriu Sabe-Tudo.

Doutor Pangloss foi internado sob os cuidados exclusivos de doutor Sabe-Tudo. Mas aquele jamais iria esperar que fosse objeto de um experimento muito mais radical.

Continua…

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente.
Assim que puder, eu libero (ou não...) o seu comentário.
Abraços.

Web Analytics