segunda-feira, 20 de julho de 2009

Voto do Décimo-Segundo Ministro do STF sobre a Reserva Indígena Raposa Serra do Sol



Senhor-Doutor-Ministro-Excelentíssimo-etc. C. Tito







Sobre a reserva indígena Raposa Serra do Sol,


Excelentíssimos ministros do Supremo Tribunal Federal, eu, como o ministro mais instruído e inteligente de todos os presentes, como o ministro mais capaz e decisivo que este excelso Tribunal jamais teve, já que tantos que aqui vieram e que daqui saíram só por indicações políticas (o Ministro cospe no sagrado chão do STF), eu, que represento a nata da cultura jurídica do Brasil, o ápice do estudo filosófico-jurídico brasileiro e, quiçá, mundial, a mim só equiparando o grande e inigualável Rui Barbosa, eu venho aqui, neste momento, pronunciar meu humilíssimo voto.





Quero ainda deixar registrado o meu protesto quanto às reiteradas tentativas de me interditarem como insano ou incapaz para continuar a tratar de minha própria vida e a julgar neste venerável Tribunal. Tentativas essas que vêm de minha própria família, de meus colegas ministros e da imprensa, em geral. Reconheço, no entanto, que são vis e vãos intentos de odioso caráter político para retirar a voz que clama no deserto, a voz que defende os interesses do povo, a voz que oblitera os interesses poderosos em prol dos ofendidos e humilhados, ao contrário de muitos desta Casa.


Mas não entrarei em maiores pormenores.


Vejamos o processo. Trata-se, conforme dito e repetido por todos, de ação popular contra a União, ajuizada em 2005 e blá blá blá. Não vou ficar repetindo o que dito e redito foi por todos os ministros deste Excelso Tribunal. Todos já conhecem os mínimos detalhes dessa ação. E, conforme ato extraordinário, talvez acossados pela presença de índios guerreiros, ou talvez temerosos da opinião pública, ou talvez receosos do Poder Executivo, de quem muitos aqui confundem relação harmoniosa com subserviência, enfim, vários Ministros tomaram a sua decisão. A mim cabe não ratificar as decisões alheias, mas, sim, pronunciar meu voto, de acordo com meu entendimento e de acordo com a Constituição do Brasil.


Devo garantir que fiquei estupefato com a ousadia do Poder Executivo de demarcar tão extensa área sem a consulta deste Excelso Tribunal. A distribuição harmoniosa dos poderes foi abalada, como um terremoto. Como um mero ministro da Justiça pôde se imiscuir assim em tão sagrados assuntos. A banalização do jurídico é um fato, meus caros colegas! Não posso admitir que o povo venha aqui me dizer como votar o meu voto. Os presentes nesta sessão que fiquem alertados sobre isso. Tomarei minha decisão, independente de pressões ou clamor popular. Analisei, detida e friamente, os autos do processo, cujo relator me parece cometeu vários deslizes, ainda que perdoáveis, pois ele não possui o meu saber jurídico (apenas em sonhos!), e sei que sou o único capaz de dar um voto equânime e justo.


Deixemos de mais delongas e vamos à matéria.


O autor da ação popular considera uma impropriedade, imoralidade e inconstitucionalidade o governo federal demarcar tão grande área de terra para os indígenas. Os nobres ministros, em sua maioria, votaram a favor da continuidade de tão vasta área e da expulsão dos "não-índios". O governador de Roraima afirma, em discutida tese, que uma área tão extensa para os silvícolas seria uma afronta à soberania nacional, tendo em vista o inequívoco interesse de estrangeiros nas ditas reservas indígenas.


A infiltração estrangeira é, realmente, alarmante. Toda vez que vejo um estrangeiro andando calmamente em nossas ruas fico estarrecido. Não que eu tenha algum preconceito contra os estrangeiros, mas é universalmente reconhecido que eles são perigosos, subversivos e maquiavélicos. Sobretudo os norte-americanos. Mas deixemos isso de lado, por enquanto.


O tema principal é a justeza ou não da área delimitada pelo Poder Executivo. Se insular ou se contínua. Se cabida ou descabida!


Vou ao meu voto.


Antes que continuem a me chamar de louco, eu, que sou sábio em matérias jurídicas e ignorante em todo o resto (já que não o preciso ser), consulto à Magnífica Magna Carta no tocante ao tratamento dos indígenas.





Basta ler as singelas palavras do art. 231 da Estupenda Constituição, para se perceber a improcedência da ação popular. Não há dúvidas, nem as suas respectivas sombras. Devo afirmar, desde já, aos índios da região de Raposa Serra do Sol, para ficarem tranquilos, pois eu garanto a eles o que é seu de direito. Devemos respeitar a Carta Magna. Somos, nós do STF, os últimos defensores do cidadão comum e dos índios, que, vá lá, não são cidadãos comuns, mas especiais.


Falta ainda delimitar uma questão maior, mais premente e mais grave desse problema.


Vejamos bem, entendamos melhor, analisemos friamente o Texto Magno. Tudo está ali. Não há outro lugar. Só a Bíblia tem poder de sedução maior. Mas eu sou brasileiro, ministro do Supremo Tribunal Federal e respeito todas as outras religiões, na medida em que elas e seus respectivos crentes não me importunem. Bem, voltemos ao Magno e Excelso Texto. Leiamos este trecho com cuidado analítico: "§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes". Aqui, temos um instituto interessante, a posse permanente , das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. São dois termos que aqui deixamos anotados para a conclusão de nosso voto: posse permanente e terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. Estou sendo explícito e didático para não se surpreenderem os incautos e ignorantes de minha capacidade de raciocínio jurídico. Afinal, sou o melhor, pedindo, modéstias à parte, desculpas aos meus menos capacitados colegas.


Voltemos à detida análise: "§ 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis." Os grifos, claro está, são meus. Quero deixar extravagantemente explícito o meu intuito e o da Magna Carta. As terras são inalienáveis, indisponíveis e os seus direitos sobre elas, imprescritíveis. Logo, chegarei ao fulcro do meu pensamento, ou melhor, do pensamento, podemos dizer, constitucional. Peço que anotem o que digo. Estou chegando, finalmente, ao desfecho.


Para isso, leiamos o parágrafo 6º com cuidado e atenção: "São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé." Aqui está o centro do meu argumento.


Considerando tais fatos alusivos ao caso, considerando o Texto Maior e cabendo a mim o voto final, antes de nosso ilustre presidente, posso proferir meu voto.





Como antecipei, a reserva Raposa Serra do Sol deve ser contínua. Ninguém lá, a não ser índios. Fora, os "não-índios". Que os arrozeiros saiam, procurem outro canto para plantar arroz ou batatas, se os aprouver. Que os trabalhadores vão para o raio que os partam. Que qualquer um não-indígena vá para onde não me interessa saber. A União que lhes dê uma indenização. Uma condição, para a permanência, na reserva é fundamental: os índios devem ficar como são, isto é, índios. Se começarem a aprender português, ou se começarem a aprender a jogar futebol, fora igualmente. Índio é índio, e brasileiro é brasileiro. Mas vamos chegar a esse ponto mais adiante.


No entanto, é pouco. Como assim é pouco? Os autores da ação popular reclamaram, em linhas gerais, que a área era muito extensa. Eu afirmo e comunico: o contrário é que é verdadeiro. A área é pouco extensa.


Cria eu que o caso era simples, mas, ontem, de madrugada, enquanto meditava sobre a origem da vida e sobre a vil tentativa de me internarem como louco, no momento mais inoportuno da insônia, quando todos os pensamentos são fatais, eu vi a verdade. Eu entendi o Texto Maior. Compreendia a injustiça dos séculos. A injustiça humana.


Percebam. O que é o Brasil? Como o Brasil foi criado? Para quem foi criado? Quem criou essa monstruosa instituição?





Os portugueses, e para os portugueses. Pedro Álvares Cabral iniciou uma contínua e gigantesca invasão de terras. Em comparação aos portugueses, o MST é fichinha. Os portugueses invadiram o Brasil inteiro. O MST invade, de vez em quando, uma fazendinha ou outra, e alguns prédios públicos. Desde o princípio, os portugueses invadiram as terras dos índios, invadiram as mulheres dos índios, com ou sem o consentimento delas, e promoveram a maior apropriação indébita da história. Não da história mundial, mas, pelo menos, da história do Brasil.


No entanto, vocês podem argumentar: "Mas nós somos brasileiros. Foram os portugueses. Não fomos nós. Nós não temos culpa dos crimes alheios". Bem, pode ser um argumento plausível para os vencedores. Devo afirmar que, se os portugueses começaram, nós, brasileiros, continuamos. Se os portugueses começaram a destruição, desmatamento e a apropriação, nós, brasileiros, descendentes de dominados e dominadores, nós continuamos.


Quantos indígenas não estão sendo mortos no momento em que escrevo estas palavras? Quantos grileiros não estão dominando o Brasil sem-fim enquanto ficamos discutindo o que é o direito? Isso só para falar dos redutos onde ainda possam existir indígenas. A realidade nas favelas e grandes centros é outra história.


É um fato que os índios, em geral, e não só os da serra Raposa, foram radicalmente removidos de suas terras. Os índios foram, paulatina e continuamente, expulsos de suas terras por uma criação do colonizador europeu. Que criação seria esta? Ora, o Brasil.


O Brasil não é dos índios, nunca foi dos índios, nem nunca será. Criar reservas indígenas é, apenas, adiar o inevitável. O Brasil, esse monstro econômico-histórico, em algum momento, comerá todas as reservas, devorará todas as florestas, não por uma metafísica do mal, mas, sim, para servir aos interesses do capitalismo-mundial. Capitalismo este que é fundamentado nas paixões humanas, em sua sede de poder, em sua ganância do lucro. O mesmo movimento destrutivo, a mesma ação volúpia de poder é que está empurrando e esmagando a floresta amazônica, que matou Chico Mendes, que trucidou Dorothy Stang, que chacinou tantas outras famílias, que trucidará tantos outros índios, que continuará, independentemente do nome e de nacionalidade, com a sua sede devastadora. Não, nobres colegas, muito meditei e não cheguei a nenhuma outra conclusão. O Brasil tudo destruirá. Essa pequena reserva, que parece tão grande, é um nada na imensidão do Brasil. Os índios tinham tudo. Hoje, não tem nada. Os índios podiam tudo antes. E, agora, este tribunal quer ditar regras para suas reservas.





Aqui reivindico o Texto da Carta Magna. As terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, as terras que são inalienáveis e indisponíveis, cujo direito sobre elas é imprescritível, ora, essas terras constituem o Brasil inteiro.


Dessa forma, a reserva indígena não deve se limitar ao que foi demarcado pelo Poder Executivo, mas, sim, abranger a integridade do território brasileiro. Todo o Brasil deve voltar para os índios.


Pois, eu digo e afirmo o meu voto. A reserva deve ser estendida. Não apenas o limite imposto até agora. Não apenas o limite requerido pelos índios. Não apenas o limite definido pelo Poder Executivo. A nova reserva indígena deve ser contínua. Deve abranger todas as terras tradicionalmente ocupadas por indígenas.


Enfim, deve abranger todo o território brasileiro.


Não mais descendentes de europeus, quer sejam de portugueses, quer sejam de italianos, de espanhóis ou outros. Não mais descendentes de negros. Nada.


O Brasil deve deixar de ser. O Brasil nunca existiu, pois sem efeitos e nulos todos os atos que violaram o direito primeiro dos índios. Mesmo a nossa amada Carta deve ser rasgada e jogada fora, deve ser banida para o cemitério de todas as legislações revogadas, pior a Nossa Magna Carta nem deveria ter existido, assim como todas as outras Constituições.


Os índios devem voltar a reinar neste território. Tudo deve voltar para os índios. A terra era deles e a terra deve voltar para eles. É muita hipocrisia querer delimitar uma área, se a área, antes, era tudo. É muita hipocrisia só expulsar os arrozeiros e seus empregados. Que culpa tinha os arrozeiros de invadir a terra dos índios, se nem o governo sabia onde começava e terminava essas terras? Que culpa temos todos nós? Mas devemos agüentar as conseqüências. Somos a esperança da nação.


A Constituição da República Federativa do Brasil deveria ter como primeiro artigo: "Não será permitida a hipocrisia".


Se não foi escrito esse artigo pelo poder constituinte, será escrito aqui e agora. A hipocrisia é que cria essas chamadas reservas indígenas, relegando aos indígenas um papel subalterno, alienígena e estranho ao corpo da pátria. São tratados como animais em uma floresta ou como atrações em um zoológico. Antes, nós tivéssemos a coragem de proclamar agora o que proclamo. A reserva deve ser totalmente contínua. Todo o território brasileiro para os índios.


Então, eles poderão fazer o que quiser.


Não há limites para os poderes deles, pois, antes, não havia limites a não ser os da imaginação e crueldade humanas.


Assim, os índios podem seguir, em paz, o caminho deles. O caminho que eles teriam seguido caso não fosse a intervenção dos portugueses e, depois, dos brasileiros.





Em paz? Quando é que existiu paz nas coisas humanas? Quando é que os seres humanos trataram com respeito e igualdade outros seres humanos? Os próprios índios guerrearão entre si. Uns serão dominados; outros, dominadores. Haverá revoltas, suplícios, violações, vinganças e muito ranger de dentes. Porque assim somos nós, os seres humanos. Mas aqui não é o lugar de tais considerações metafísicas. Muito físicas, na maioria das vezes.


Para os índios, tudo. Para os brasileiros, rua.


Devemos comandar as Forças Armadas, a Polícia Federal e todos outros órgãos coercitivos para começar a evacuação imediata. Todos os brasileiros devem ser reunidos e mandados para algum território fora do Brasil.


No mais, tenho dito.


(Vossa Excelência C. Tito somente agora teve seu voto publicado, porque foi internado em uma instituição médica muito prestigiosa, de onde conseguiu transmitir essa humilde mensagem para o grande povo brasileiro).

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