domingo, 13 de junho de 2010

Copa do Mundo ou a Grande Preparação

Meus caros colegas,

Sou um daqueles que normalmente vivem como normalmente todos vivem.
Reclamo dos impostos, reclamo do trânsito, reclamo do trabalho, mas, depois de tanto reclamar, admiro as coisas boas da vida. Sei que, nesse quesito, as coisas boas da vida, não há também nenhum consenso, pois, como no já batido mas não menos verdadeiro lugar-comum, o que pode ser bom para mim pode ser de péssimo gosto para você, e essas diferenças de gosto, de preferências, de escolhas não só ocorrem em casos de radicais diferenças sócio-culturais ou econômicas, mas principalmente - e aqui o que há de inexplicável - ocorrem também na mesma casa, entre irmãos, entre pessoas do mesmo nível sócio-econômico, com o mesmo tipo de formação, entre vizinhos. Ou melhor, entre aqueles que, por diversos motivos, se consideram próximos. A esse fenômeno, podemos chamar as diversas ordens de valores, que convivem dentro da mesma sociedade, mas sobretudo dentro da mesma alma. Sobre esse tópico, gosto muito da frase de Weber: "No teor das convicções mais profundas de cada pessoa, uma dessas éticas assumirá as feições do diabo, a outra as feições divinas e cada indivíduo terá de decidir, segundo sua própria ótica, o que, para ele, é deus e o que é diabo" (em "A ciência como vocação"). Ou, resumindo, o diabo de um é o deus do outro, e vice-versa. Ou cada cabeça, uma sentença.
Mas por que começo esse tópico Copa do Mundo com esse aparte pseudo-filosófico?
Por que não começo esse post com a celebração deste grande evento mundial?

Talvez porque não acredite que seja um grande evento mundial. Talvez porque não acredite nesta grande celebração de esporte. Talvez porque acredite sinceramente que ganhar ou perder esse evento não vá fazer nenhuma diferença ou, melhor, que irá fazer tão-somente uma diminuta diferença na vida das pessoas. Podemos ser hexa, hepta ou octacampeões, mas, ainda assim, carregaremos nossa humana condição e nossa brasileira condição. (Não vai fazer muita diferença para o torcedor, para o brasileiro comum, mas, com certeza, faz diferença para os jogadores e equipe técnica da seleção campeã, que vão receber mais, que vão ter mais prestígio, que vão engordar lembrando que foram campeões, etc.)
Mas, aí, você (e tomo você como um exemplo do brasileiro ou brasileira comuns...) me dirá: "você é louco! O país pronto para mais uma batalha, para uma guerra pelo título e você com essas palhaçadas! Brasil! Brasil!"
Bem, talvez por isso que tenha começado tão pseudo-filosoficamente! Eu já escrevi sobre a Necessidade dos Jogos em nossa humana vida. Lá teci alguns comentários sobre a nossa essencial necessidade de enganar a Morte, espantar o Tédio e matar o Tempo. Essa tríade nos envolve em todos os momentos, pois se uma de suas faces é o próprio Tempo, e devemos fazer o que for necessário para dela fugir.
No entanto, este post pretende ir por outra vereda. Estamos discutindo valores, não é mesmo? Meus valores parecem ir contra os valores da maioria. Muitos darão com os ombros e dirão que sou louco. Tudo bem, é direito deles. Outros tentarão me convencer até a morte, pois não conseguem admitir, muito menos vislumbrar que, no mundo, existam pessoas com opiniões tão diferentes das suas. Conseguem até admitir teoricamente e em público (e essa admissão pública dos dias atuais, essa aceitação asséptica de tudo o que é diferente, ainda que com ressalvas, está muito relacionada com o politicamente correto, mas isso é outra discussão), mas, na prática e em particular, considera absurda ou burra ou estúpida ou inacreditável a existência de um ordem de valores diferente. Ou mesmo é contrária a essa ordem de valores...
Bem, eu considero racionalmente que ganhar ou perder a copa do mundo não seja relevante para a nossa existência. Nem considero que seja importante para a nossa nação. Tendo em vista o que está em jogo (especialmente neste ano eleitoral), acredito ainda que sirva para nos fazer esquecer do que realmente vai nos afetar a vida. Cegueira futebolística é danosa nesse sentido. E é uma política antiga para nos fazer esquecer da política, é só lembrar do pão e circo dos romanos. Não que eu considere a política como mais importante em sua essência, mas, com certeza, é mais importante na medida em que vai afetar a nossa vida. Lembro que o filósofo prático Benjamin Franlkin afirmava que só há duas coisas inevitáveis na vida: morrer e pagar impostos Os países de primeiro mundo ou desenvolvidos também são afetados pelos males da cegueira futebolística, mas conseguem, na medida de suas forças, eleger alguns políticos aceitáveis para seus cargos, em que pesem um Bush, um Berlusconi ou um Armadinejad (o Irã, país desenvolvido?), para só ficarmos nas primeiras letras do alfabeto.
E a cegueira futebolística, no período da Copa do Mundo, traz, em seu bojo, a unanimidade dos torcedores, a unidade da nação e a detratação dos traidores. Nesse período da copa, parece que estamos nos preparando não para jogos de futebol, mas, sim, para a... guerra!
Acham que estou exagerando? Vamos ver...

Recentemente, somos bombardeados por propaganda pró-Brasil, e não apenas de propagandas do governo federal, mas de todos os ramos industriais. Uma das propagandas mais marcantes é o de uma conhecida marca de cerveja. Nessas propagandas, os jogadores aparecem como soldados, preparando-se para a guerra, à espera dos bárbaros, dos inimigos, dos outros... Nessa linha de pensamento, estamos nos unindo para enfrentar os nossos inimigos em comum. Estamos nos preparando para a guerra. Para um jogo, para um esporte, sim. Selecionamos nossos melhores, treinamo-os, falamos que eles são melhores, falamos que eles têm que nos representar, falamos que eles devem dar a vida pela seleção.
Mas não são todos os jogos e esportes uma preparação para a guerra? Não estamos mostrando para os outros que somos mais ágeis, mais fortes, mais resistentes, mais tenazes, mais espertos? Não estamos demonstrando nossa força e habilidade em conquistarmos (outro verbo que pode ser usado para esportes e guerras...) nossos objetivos? Não ficam os outros admirados com a nossa capacidade?
E não podemos gozar dos outros quando deles ganhamos?
Alguém poderia argumentar que os esportes de equipe, em geral, e o futebol, em particular, podem ser considerados maneiras de se criar um escape para as tensões mais agressivas da humanidade. Dessa forma, os campeonatos e jogos poderiam ser considerados tão-somente como simulações de efetivas guerras e não como preparações para ela. O esporte, visto dessa forma, seria extremamente útil para a manutenção de paz entre as nações.
Bem, posso afirmar que concordo e que discordo dessa linha de pensamento. Primeiro, concordo, porque eu considero os esportes como uma simulação de uma guerra. Igualmente concordo que os esportes sirvam como válvula de escape para impulsos mais agressivos. No entanto, discordo quando afirmam que a guerra não seja uma preparação para guerra, tendo em vista esses argumentos. Como um piloto de avião se prepara para sua profissão? Como um astronauta se prepara? Por meio de simulações. Como uma equipe se prepara para um campeonato? Por meio de treinos. Ou de simulações...
Mas, para o grande público, isso pouco ou muito importa. Pouco importa, porque eles querem o espetáculo ou simplesmente querem que seu time vença, a qualquer custo. Dentro ou fora das regras. Com as mãos. Tudo vale, se levar o título. Ou muito importa, pois muitos torcedores, por meio das torcidas organizadas, estão realmente indo para a guerra. E, com meu argumento, mais guerras eles terão.

De qualquer forma, a cada um o seu deus, a cada um a sua paixão, a cada um o seu rei. Que venha a Copa do Mundo, que venham os jogos do Brasil, que venha - se vier - o título, ou que venha a decepção! Conforme afirmei, fazemos de tudo para afastar o Tédio, matar o Tempo e enganar a Morte. E, desde que você não mate, fira ou prejudique ninguém nesse intento, eu, liberal que sou, não me importo muito com o que você faça para conseguir tais intentos. De qualquer forma, o resultado desta luta já é conhecido.
E, mesmo com o título, lembre-se sempre de que você continuará o mesmo, com os mesmos problemas e percalços. Mas um pouquinho mais feliz, não é verdade?

4 comentários:

  1. Muito bem colocado, Christiano, toca especialmente as criaturas que enxergam outros aspectos, o que é raríssimo no " país do futebol". Embora veja lados positivos, sou criatura avessa ao futebol, de forma geral, e isto não muda quando se trata de copa mundial, o que causa invariável estranhamento. Ser diferente, pensar diferente sentir e perceber diferente? Na teoria todos dizem sim, na prática, é unânime o não, direta ou indiretamente, ainda mais tratando-se do campeonato mundial. Até porque, praticamente tudo e todas as coisas e pessoas estão mobilizadas para os jogos, nada mais funciona, ninguem lembra nem muito menos respeita, sequer admite que possam existir pessoas com opniões e gostos diferentes. Respeito aos que adoram, acompanham, vibram, se sentem alegres, felizes e acrescidos. Bom seria se fosse recíproco, pois não gostar de futebol nem "torcer" pelo país, vestindo as cores, empunhando bandeiras e aderindo à ruidosa multitude de fogos e vuvuzelas não me faz menos brasileira, tampouco quer dizer que não ame meu país.

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  2. Prezada Tebenas,
    Em primeiro lugar, obrigado pelo comentário. É bom ver que alguém leu (e compreendeu...) o nosso trabalho.
    Em segundo, posso afirmar que nunca fui ardoroso fã de futebol ou qualquer outro tipo de esporte, mas tento não irritar muito meus próximos com minhas ideias particulares. Às vezes, falo "E o que importa para você se seu time perder o campeonato? Você vai ficar mais feio, mais pobre por causa disso?", mas me olham como se eu tivesse cometido uma heresia, com exceção de meus amigos mais próximos que não me levam a sério...
    Quanto a ser diferente, acho que o ser humano ainda tem (e ainda terá...) aversão. Ele tenta controlar, tenta esconder, mas não admite, a não ser em discursos politicamente corretos. A tolerância, creio eu, é um requisito de civilidade.
    Bem, é o que eu acho...
    Obrigado mais uma vez.

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  3. Olá Christiano, pois é, eu nem chego a falar nada para os aficionados, especialmente os mais ardorosos, mas se há alguma conversa limito-me a dizer que não gosto e que é um direito meu ter esta liberdade de escolha. Sim, a tolerância é sem dúvida um requisito da civilidade, e deveria ser observada por todos, assim como o respeito pelos gostos, preferências, opções e livre arbítrio alheios, não é mesmo? Mas, e não só na questão futebol, é justamente a egocêntrica visão da vida e do mundo o germe da intolerância, do desrespeito que degenera em arrivismo, discórdia e coisas piores. Ver e sentir o mundo de forma ampla e não apenas a partir de si mesmo, e admitir de verdade que os modos, credos e gostos alheios existem e precisam ser respeitados tanto quanto os seus, é a lição, a meu ver, ainda não aprendida pela raça humana, infelizmente.

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  4. Prezada Tebenas,
    Concordo com tudo o que você escreveu. E ainda acho que, enquanto formos seres humanos, seremos, sim, desrespeitosos, egocêntricos, egoístas, paranoicos, etc. Sim, em minha humilde opinião, a tolerância é um esforço para sermos mais, para sermos melhores. Pois, com certeza, nossa história - a história da humanidade - comprova que são raros os momentos de verdadeira tolerância, verdadeira liberdade...
    Mas pode ser só eu sendo pessimista...

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